O romance de Ray Brad-bury, Fahrenheit 451, publicado em 1953, fala-nos de um futuro em que opiniões pessoais e o pensamento crítico são considerados coisas perigosas e no qual todos os livros são proibidos e queimados: o número 451 do título refere-se à temperatura (em graus Fahrenheit) na qual o papel pega fogo. Trata-se, obviamente de ficção, mas houve momentos em que essa ficção expressou a realidade. A censura acompanhou como um sombrio espectro boa parte da história da humanidade. O próprio termo “censor”, que é latino, data do século quinto antes de Cristo, quando o Império Romano delegou a funcionários a tarefa de moldar o caráter das pessoas. Mas não só em Roma acontecia isso; na Grécia clássica, em 399 a.C., o filósofo Sócrates foi condenado à morte por difundir entre jovens ideias consideradas perigosas. Desde então, não foram poucos os regimes totalitários que prenderam ou mataram aqueles que ousavam contestá-los.
A partir da invenção da imprensa, por Johannes Gutenberg, no século XV, o livro impresso passou a ser um alvo preferencial nesse processo. Já em 1559, a Igreja estabelecia o Index Librorum Prohibitorum, a lista de livros que os fiéis não podiam ler, e que teve mais de 20 edições, antes de ser definitivamente suprimida em 1966. As autoridades civis exerciam poder semelhante; em 1563, o rei Carlos IX, da França, baixou decreto estabelecendo que nenhuma obra podia ser impressa sem permissão do rei. Nos séculos que se seguiram, e sob várias formas e pretextos, livros foram proibidos e até queimados, como aconteceu na Alemanha nazista. Os motivos, ou pretextos, eram de várias ordens: morais, políticos, militares. Nos Estados Unidos, em vários lugares e por várias instituições, foram censurados livros como Chapeuzinho Vermelho (numa das versões a menina oferece vinho para a sua avó), Alice no País das Maravilhas (os animais falam com linguagem humana), a coleção Harry Potter (supostamente promove bruxaria). Numa época, direções de escolas no Rio Grande do Sul proibiram os livros de Erico Verissimo, porque achavam ser imorais.
No Brasil, tivemos um período de censura severa, quando do regime autoritário (1964-1985). As razões apresentadas não raro beiravam o ridículo; numa exposição de “material subversivo” apreendido em Porto Alegre, havia um livro com a seguinte legenda: “Obra esquerdista em chinês”. Era uma Bíblia em hebraico. Mais recentemente, e nas escolas, surgiram problemas com livros que narravam cenas de sexo e de violência, às vezes selecionados por técnicos da área educacional. Por outro lado, sabemos que a disseminação da pornografia e da violência é cada vez mais frequente. E isso sem falar na questão do politicamente correto, que procura evitar palavras ou expressões potencialmente ofensivas a grupos étnicos ou religiosos, ou a opções sexuais. Pergunta: o que devem fazer os pais e educadores diante dessa situação?
Creio que uma expressão consagrada pela saúde pública aqui se aplica perfeitamente: é melhor prevenir do que remediar. E isso por uma simples razão: é tão grande o volume de informações atualmente disseminadas, não só por livros, mas também pela internet, por vídeos, pela própria tevê, que é impossível evitar o acesso de crianças e jovens a esse material. O melhor é prepará-los para que possam identificar os potenciais riscos que estão ocorrendo. Mas há um aspecto adicional. Esses riscos não são como os do fumo ou das drogas, substâncias sempre nocivas, e que, em qualquer dose, envenenam o organismo. O material veiculado pelos meios de comunicação pode se transformar numa fonte de aprendizado. É como vacinar uma pessoa: ela é inoculada com germes inativos e seu organismo preparará anticorpos que vão defender essa pessoa de doenças. Isso exige um estreitamento dos laços entre pais e professores, de um lado, e os jovens de outro. No caso da tevê, por exemplo, é muito bom que o pai ou a mãe sente ao lado da criança e converse com ela sobre o que aparece na tela. Também é muito bom que os pais leiam para os filhos quando esses ainda são pequenos. Isso, além de introduzir a criança ao mundo dos livros, representará um vínculo emocional que persistirá por toda a vida. O menino e a menina associarão o livro à imagem protetora do pai ou da mãe.
Em relação à escola, vale o mesmo raciocínio. Quando um jovem me pergunta que livros deve ler, respondo: “Em primeiro lugar, aqueles que os professores indicam; eles conhecem o assunto, eles têm condições de fazer boas recomendações”. Mas nunca digo que o jovem não deve ler tal ou qual obra, tal ou qual autor. Meu aprendizado como leitor passou por livros que depois considerei tolos ou ruins. Mas isso foi útil para que eu pudesse aprender a formar o meu juízo crítico. Na leitura, a gente avança pelo método de tentativa e erro, de aproximações sucessivas.
Em resumo, proibir ou censurar, não. Recomendar, debater, ensinar, sim. Vivemos num mundo cheio de imperfeições e perigos, e o que podemos fazer com nossos filhos e alunos é ensiná-los a navegar por esse mar turbulento, em navios cujas velas são as páginas da grande literatura. Ler é aventura, ler é paixão.
Moacyr Scliar